terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Educação no Mundo- Revolta Espanhola

Nas salas de aula de Madri, acabaram-se as férias de verão, como no restante do hemisfério norte, e as crianças voltaram às aulas. Mas desta vez, a lição que aprendem não é só de espanhol ou matemática, mas também de vida real. A Espanha, que por tanto tempo foi modelo de primeiro mundo e o eldorado dos emigrantes dos países em desenvolvimento, está afundada em uma das mais graves crises econômicas da sua história e agora se vê obrigada a reduzir custos nos serviços mais básicos, como saúde e educação.

Os números da economia espanhola são assustadores: a taxa de desemprego, em torno de 21,2%, é a mais elevada entre os países desenvolvidos - o segundo lugar, ocupado pela Irlanda, está longe, com 14%. Além disso, o país sofre com a perspectiva de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nulo até o final do ano, depois de ter registrado pífios 0,1% em 2010. 

Os dados são tão graves que levaram o governo a anunciar, em setembro, que promoveria uma série de cortes orçamentários na educação para amenizar o déficit. As medidas vão reduzir o orçamento em no mínimo 500 milhões de euros neste ano, em um país que já não atinge o índice médio de investimentos em educação dos países que integram a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A Espanha dedica 4,6% das riquezas ao setor, enquanto os membros da entidade destinam 5,4%.

Na região de Madri, uma das mais afetadas, o governo se lançou em diversas frentes para diminuir os gastos. Uma das mais polêmicas foi o aumento do número de horas de aulas por professor do ensino secundário espanhol (de 12 a 16 anos). A carga semanal permanece de 37,5 horas, conforme manda a lei trabalhista. Mas agora os professores deverão dar duas horas a mais de aulas, passando de 18 para 20 horas semanais. Ou seja, se por um lado os titulares trabalham mais pelo mesmo salário, por outro a administração dispensa a contratação de profissionais interinos.

O pedido foi feito através de uma carta pessoal enviada aos docentes pela presidente da região, Esperanza Aguirre, na qual ela evoca os males da crise e "o sentimento de dever" para justificar o aumento das horas trabalhadas sem compensação salarial. A solicitação se une a outras decisões mais arbitrárias do Ministério da Educação, como a de demitir 3 mil professores substitutos - o que significa redução de em média 10% do corpo docente de cada escola secundária da comunidade madrilenha.

No ano passado, outros 1,5 mil já tinham sido demitidos. Os que conseguiram segurar o emprego amargaram uma folha de pagamento entre 5% e 10% mais modesta. O resultado é que, neste período, também o número de alunos por classe aumentou cerca de 5%, para compensar a diminuição no quadro docente das escolas. Madri não é a única a penar com a austeridade fiscal na educação: 10 das 17 regiões espanholas estão mobilizadas para impedir cortes, entre elas Galícia, Catalunha, Castilha-Mancha e Navarra. Em todas estas, o déficit está distante da barreira de 1,3% do PIB estabelecida pelo governo espanhol. O endividamento das regiões autônomas chega a 133,1 bilhões de euros (324,5 bilhões de reais), o equivalente a 12,4% do PIB do país. No total, 8,2 mil professores temporários serão licenciados nestas regiões.

Em Valência, 50 milhões de euros foram decepados do orçamento salarial de professores, e entre 1,2 mil e 1,5 mil docentes devem ser afastados das salas de aula nos próximos meses. Outro setor privilegiado da educação pública valenciana, o de professores de aulas particulares para alunos em dificuldades, deverá sofrer uma redução de 400 profissionais. Mais: haverá cortes significativos no número de especialistas educacionais, como pedagogos, que passarão de 304 nas escolas públicas da região, no ano passado, para não mais do que 79 neste ano.

Novos tempos


"Pela primeira vez depois de duas gerações, os espanhóis percebem que de fato  vão viver pior", analisa Fernando Vallespin professor de ciência política da Universidade Autônoma de Madri. "A crise deixou de ser um problema macroeconômico: agora, é sentida nos detalhes menos esperados da vida da população." As controvérsias dividem o próprio governo do primeiro-ministro socialista, José Luís Zapatero. Linhas mais à esquerda da sigla, como o ministro da Infraestrutura, José Blanco, declararam à imprensa que "a educação e a saúde são direitos sagrados que não deveriam ser cortados". Entretanto, cada região autônoma escolhe como deverá atingir as metas de economia determinadas pelo governo.

Os "indignados" espanhóis - que já não precisavam de muito para se manifestar - logo se levantaram contra os anúncios: em setembro, dezenas de milhares foram às ruas por dois dias em protesto, aos gritos de "não aos cortes! A educação não é um gasto, é um investimento". A greve foi aderida por 43% dos professores, segundo as autoridades, e 80%, na contagem sindical. Em outubro, docentes, alunos e pais repetiram o ato, e prometem não recuar enquanto o governo não voltar atrás.

"Não podemos permitir que as próximas gerações sejam penalizadas por uma crise que foi criada pelos nossos governantes atuais. Essas medidas são não apenas absurdas em relação aos professores, como extremamente injustas com os alunos", afirmou Francisco Melcon, do sindicato ANPE, dos docentes públicos. De acordo com o representante, as medidas de austeridade são "as mais graves desde a transição democrática na Espanha". O medo da categoria, afirma, é que estas medidas sejam apenas o começo de um rombo maior, que poderia provocar estragos ainda mais sérios.

O problema mais grave, temem, é o tempo que o país levará para se recuperar de um retrocesso como este - ainda mais quando se leva em conta que a Espanha mal havia se reerguido de um corte orçamentário semelhante, ocorrido há 16 anos. Em 1993, o governo da época reduziu 5% dos investimentos em educação para se restabelecer de uma crise. 

Também é bastante recente a absorção de impactos importantes na educação espanhola. Primeiro, a decisão de estender, em 2000, a escolaridade obrigatória de 14 para 16 anos. Segundo,  a chegada maciça de alunos filhos de imigrantes aos bancos escolares. Terceiro: desde 2001, 94% das crianças frequentam a escola a partir de três anos, decisão baseada em estudos que afirmam que a escolarização precoce é uma das maneiras mais eficazes para melhorar o desempenho escolar. Ou seja, além de arcar com menos professores, o sistema educacional conta com muito mais alunos, em torno de 320 mil a mais em relação a cinco anos atrás.

"Os sistemas educacionais europeus se unificaram a tal ponto que hoje em dia é muito mais difícil promover mudanças importantes, seja para melhor ou para pior. Se a situação seguir neste ritmo, vai ser muito difícil manter os padrões de qualidade estabelecidos pela União Europeia e com os quais a Espanha se comprometeu", afirma Carabaña Julio, professor de sociologia da educação da Universidade Complutense, para quem as decisões do governo espanhol não são nada estratégicas. "Promover cortes na escola é solução paliativa de curto prazo e com efeitos nefastos a longo prazo: você ganha pão hoje, mas passa fome amanhã."
 
Preocupações com o futuro


Há insatisfação também por parte dos pais: a Confederação Espanhola de Pais de Alunos (Ceapa) estima que o aumento da carga horária de trabalho dos professores acarretará consequências duras à qualidade do ensino básico e médio, e, portanto, ao futuro desta geração. Eles temem, por exemplo, que os adolescentes tenham mais dificuldade em conseguir uma vaga em universidades se o ensino médio for prejudicado. Em setembro, a OCDE fez um alerta significativo: em períodos de crise, os portadores de um diploma de nível superior são menos suscetíveis a ficar sem emprego do que as pessoas que não conseguiram chegar à universidade.

De acordo com a organização, a taxa de desemprego dos diplomados é de em média 4,4%, contra 11,5% dos trabalhadores sem curso superior. O abandono dos estudos antes da universidade traz consequências cada vez mais graves, tanto para as pessoas envolvidas quanto para a sociedade como um todo, advertiu o secretário-geral da OCDE, Angel Gurría. "Devemos, a qualquer custo, evitar o preço amargo de uma geração sacrificada por essa crise. Apesar das restrições orçamentárias, os estados devem manter seus investimentos para preservar qualidade do ensino, sobretudo o dos alunos de meios sociais mais vulneráveis", exortou Gurría.

A organização - que representa os 30 países mais ricos do mundo - também destaca que, em longo prazo, o investimento em educação de qualidade é sinônimo de economias para os cofres públicos. Os graduados recorrem com menos frequência e por menor duração aos sistemas públicos de seguro-desemprego ou outras de ajudas sociais. Para completar, são mais "rentáveis": ao longo da vida de um diplomado residente nos países da OCDE, o Estado arrecada, em média, US$ 91 mil (R$ 161,5 mil) em impostos e contribuições sociais. Talvez os manifestantes indignados tenham mesmo razão: educação não é gasto, é investimento.


Vazio Conceitual


Os conceitos de competências e habilidades foram introduzidos formalmente no sistema educacional brasileiro em 1990, com a criação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (1990) e, posteriormente, em 1998, com a instituição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Na contramão do chamado "conteudismo", defendia-se que os conteúdos curriculares, sozinhos, não dariam conta da formação dos alunos. Era preciso ensiná-los a usar os conhecimentos aprendidos em sala de aula no mundo em que viviam. 

Mais de vinte anos depois, observa-se exatamente o inverso. As ideias de competências e habilidades foram mal incorporadas nas salas de aula, e poucos professores sabem como relacioná-las com os conteúdos curriculares. Há quem defenda que existe um modismo em torno dos termos, que invadiram a escola e o ofício docente praticamente destituídos de seus supostos significados originais. "Não houve aplicação prática dos conceitos. O aporte teórico produzido sobre o assunto não chegou a se institucionalizar", desabafa Nílson Machado, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e um dos criadores do Enem em 1998. 

O vácuo conceitual parece não ser exclusividade da rede pública ou particular. Nem mesmo de uma determinada região do país ou de uma etapa escolar. "Participei como formadora em eventos destinados a professores e constatei que a dificuldade de colocar em prática um currículo com foco nas competências e habilidades é generalizada", conta Mônica Waldhelm, doutora em Educação pela PUC-Rio, que emenda duas perguntas para as quais ainda não há resposta: um currículo pautado nas competências é esvaziado de conteúdo? Como articular conceitos e competências?

DefiniçõesA pesquisadora Bernadete Gatti, da Fundação Carlos Chagas (FCC), lembra um princípio fundamental sobre a definição dos termos: não há competências e habilidades sem conteúdos.  "A habilidade não existe em si, no espaço. Ela é decorrência de uma ação da pessoa sobre o mundo", esclarece. Para Bernadete, a interação entre as duas capacidades e o conhecimento se dá nos seguintes moldes: são decorrências do trabalho que a criança faz (intelectual ou prático) para tomar escolhas, fundamentar seus atos, resolver situações e tomar decisões. Ela exemplifica: para o aluno resolver situações-problema, é necessário que ele tenha conhecimentos de física, química ou biologia, e saiba associar os conteúdos à atividade prática. "A discussão abstrata causou um mal muito grande, ficou mal colocada. E não era essa a intenção dos primeiros formuladores do Enem", opina.

Em 1962, no livro Obra aberta, o filósofo italiano Umberto Eco introduziu justamente a ideia de que a partir de interpretações sucessivas, pode-se produzir um conhecimento genérico sobre determinado conceito e até o falseamento de sua concepção original. Para Bernadete, a discussão sobre competências e habilidades caminhou nessa direção. "Você tem pessoas das áreas de economia e administração, por exemplo, que se apropriaram do conceito de forma simplificada, operacional, que não corresponde à teorização da psicologia cognitivo-social sobre esse assunto", explica. "Quando caímos na ideia de operacionalização e em querer transformar tudo em coisas factuais ou objetiváveis, as ideias perdem um pouco o sentido", aponta.

A palavra "competência" deriva de "com" e "petere", que em latim significa "pedir junto com os outros, buscar junto com os outros". A definição sobre o que são, de fato, as competências e habilidades é objeto de disputa na literatura acadêmica. Com outros colegas, Ricardo Primi, doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela USP e coordenador do Laboratório de Avaliação Psicológica e Educacional (LabAPE) da Universidade São Francisco, analisou, em 2001, o embasamento teórico do Enem, comparando-o aos modelos contemporâneos de inteligência humana sob a ótica da psicometria e da psicologia cognitiva.

Primi constatou que a matriz da avaliação parte de uma visão de psicologia batizada por ele de "piagetiana", e que não corresponde à área da psicologia cognitiva teorizada por Richard E. Snow e David F. Lohman, entre outros autores. Isso porque, para o Enem, competências são "modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer". Já as habilidades "decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do saber fazer. Através das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências".

Mais concepções
O Saeb trabalha com uma visão semelhante. O documento "Saeb 2001: Novas Perspectivas" retoma o conceito de competências do sociólogo suíço Philip Perrenoud, principal artífice da introdução desses conceitos na escola: "competência é a capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiando-se em conhecimentos, mas sem se limitar a eles". Ainda para o Saeb, as habilidades se referem ao "plano objetivo e prático do saber fazer e decorrem, diretamente, das competências já adquiridas e que se transformam em habilidades". As definições dialogam com a teoria do epistemólogo e educador suíço Jean Piaget, segundo a qual a construção do conhecimento ocorre quando acontecem ações físicas ou mentais sobre os objetos.

Enquanto isso, a área da psicologia cognitiva referenciada por Primi traz a ideia de "capacidades", que representam o potencial de uma pessoa para lidar com determinadas informações e linguagens. A competência seria um estado de maestria, em que as capacidades são cristalizadas e atualizadas por meio dos processos de aprendizagem (aqui entram os conteúdos curriculares), o que resultaria na aquisição de conhecimento. Por exemplo: a capacidade de visualização, que corresponde à capacidade de representar conceitos visualmente e de operar com os mesmos mentalmente. "Se você a tem, se ela foi desenvolvida, terá uma competência em matemática", explica Primi.

É preciso agregar outro elemento ao embate em torno da definição dos termos. Na década de 80, eles foram apropriados também pelo mundo corporativo. Como lembra Silza Maria Pazello, doutora em ensino na educação brasileira pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), à época, o ambiente do trabalho era visto como um modelo de sucesso, o que levou à ideia de que "ter só conhecimento não era suficiente; era preciso aplicá-lo na prática". Foi justamente essa a ideia que aterrissou no Brasil em 1996, quando os princípios foram adotados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9.394/96), com o apoio de organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Gustavo Morita
Uso do GPS no ensino de geometria estimula capacidade de expressão
Percurso irregularPara além dos problemas comunicacionais, os conceitos não se incorporaram nas escolas por questões relacionadas ao próprio Enem. Nílson Machado  acredita que o projeto inicial do exame não era definitivo. "Houve dificuldades iniciais de aceitação e consolidação, e quando era para começar a corrigir os rumos e repensar a prova, mudaram o governo e a equipe", explica. Para ele, as mudanças às quais o exame foi submetido ao longo dos anos têm parcela de culpa na falta de consolidação dos conceitos. Bernadete Gatti concorda: as modificações no instrumento de avaliação, de modo a aproximá-lo das universidades, sacrificaram o debate em torno desse vácuo conceitual. "Depois que o Enem foi criado, houve dificuldade de fazer questões que cobrassem as competências e habilidades. Com a transformação da prova em vestibular, perdemos a condição de realmente avaliar competências e habilidades", diz.

Outro problema já identificado diversas vezes pelos especialistas diz respeito aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do ensino fundamental e do ensino médio. Para começar, eles não mencionam explicitamente os conceitos de habilidades e competências - e quando o fazem, no caso do ensino médio, trazem uma lista de capacidades, como se os termos fossem uma coisa só. Além disso, como não se concretizaram efetivamente nas escolas, falta clareza sobre o currículo mínimo, com as expectativas de aprendizagem para cada etapa educacional. O descompasso gerou uma situação curiosa: em 2009, com a mudança do Enem, as ciências matemáticas foram incorporadas à matriz de avaliação (juntamente com linguagens, ciências humanas, ciências naturais e ciências matemáticas). Os parâmetros curriculares do ensino médio, que só preveem os quatro temas, continuaram da mesma maneira. "Eles nunca se realizaram concretamente nos colégios. Precisamos adaptar esse currículo. Esse é o nó. Certamente fizemos muitas coisas, mas elas não estão articuladas e não produzem efeito prático algum", diz. 

A falta de diálogo não existe apenas entre os parâmetros curriculares e a matriz de avaliação. Ela engloba também a sala de aula e, de maneira indireta, os próprios cursos de formação docente, que não dão fundamentos e a instrumentação para que os futuros professores desenvolvam seu trabalho. "A formação é genérica. Há uma ausência de orientação curricular. Uma matriz de avaliação como se fosse o currículo. E não sabemos se a matriz corresponde ao que é ensinado nas escolas. É um desencontro", ressalta Bernadete Gatti. Mônica Waldhelm lembra que, para além da formação docente "conteudista", há outro entrave para a incorporação das competências e habilidades na prática docente: a existência de materiais didáticos pouco diversificados, "com assustadora expansão dos apostilados" nas redes de ensino.