terça-feira, 12 de abril de 2011

Achado para não ser esquecido


No dia 1º de maio de 1823, a escritora inglesa Maria Graham (1785-1842), em uma de suas viagens ao Brasil, escreveu em seu diário:
“Vi hoje o Val Longo [Valongo]. É o mercado de escravos do Rio. Quase todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de escravos. Passando pelas suas portas à noite, vi na maior parte delas bancos colocados rente às paredes, nos quais filas de jovens criaturas estavam sentadas, com as cabeças raspadas, os corpos macilentos, tendo na pele sinais de sarna recente.
Em alguns lugares, as pobres criaturas jazem sobre tapetes, evidentemente muito fracos para sentarem-se. Em uma casa, as portas estavam fechadas até meia altura e um grupo de rapazes e moças, que não pareciam ter mais de quinze anos, e alguns muito menos, debruçava-se sobre a meia porta e olhava a rua com faces curiosas. Eram evidentemente negros bem novos.”

Desde 1770, quando o marquês do Lavradio ordenou a mudança do mercado de escravos das proximidades do Paço (hoje, Praça XV) para a rua do Valongo (atual rua Camerino), a região que hoje compreende os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo passou a abrigar, além do próprio mercado, um sem número de trapiches e casas de negociantes, onde os recém-chegados ficariam expostos à espera de seus futuros senhores.Assim como tantos outros viajantes que estiveram no Rio de Janeiro na primeira metade do século 19, Maria Graham estava chocada com o que via, mas a cena não era nenhuma novidade para os habitantes da cidade.

Desses africanos, muitos eram crianças, capturadas quando o comércio de africanos já estava nos estertores: proibido no Brasil desde 1831 – ainda que essa interdição tenha sido largamente desobedecida – e condenado pela Inglaterra desde o início do século 19.
Os traficantes perceberam que seu negócio estava com os dias contados e, por isso, traziam quem conseguisse encontrar pela frente. Essas crianças muitas vezes nem resistiam às agruras da viagem e faleciam ao chegar ao Rio de Janeiro. 

Costurando a história


Lembro disso por conta da recente descoberta das estruturas do cais do Valongo – e também do cais da Imperatriz, projetado pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny (1776-1850) em 1843 para receber Teresa Cristina (1822-1889), que chegava ao Brasil para desposar D. Pedro II, imperador do Brasil – durante as obras de reforma da zona portuária do Rio de Janeiro.
Nas imediações do Valongo já havia sido encontrado o cemitério de pretos novos, originalmente um pântano onde eram lançados os corpos daqueles que não haviam resistido à viagem e atualmente um sítio arqueológico, localizado na rua Pedro Ernesto – que também já foi chamada de rua da Harmonia, caminho da Gamboa e rua do Cemitério.
Consta que o cheiro na região depois das chuvas era tão horrível que o intendente geral da polícia, Paulo Fernandes Viana, em 1815, chegou a mandar um ofício ao juíz do crime do bairro, solicitando que a área fosse aterrada e que os negociantes que lançassem cadáveres ali fossem multados.

Povoado e frequentado 

A importância do achado não é pequena. Afinal, de fins do século 18 até 1843, data de sua desativação como local de desembarque de escravos, passaram pelo Valongo nada menos do que 897.748 africanos escravizados, segundo dados do projeto The Transatlantic Slave Trade Database (O Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, em português), que reúne informações sobre todas as viagens da África para as Américas realizadas por navios negreiros entre 1514 e 1866. 
Junto com alguns outros portos na Bahia e em Pernambuco, o Valongo foi a porta de entrada para os últimos africanos escravizados que entraram no país. Em seu entorno, toda uma estrutura de organização do comércio escravista se desenvolveu.
A peça-mestra dessa estrutura era justamente os “homens de Valongo” – não por acaso, a forma como eram denominados os traficantes –, mas dela também participavam comissários da alfândega, capitães dos navios, tropeiros, ciganos, libertos e até ladrões. Não é exagero afirmar que parte substancial da sociedade carioca contemporânea passou por ali.
Depois da transferência do mercado de escravos para o Valongo, a área quase rural, distante dos olhares curiosos dos viajantes estrangeiros, adensou-se com a construção de novos trapiches, armazéns, mercados, casas de negociantes e pequenas lojas.
São justamente as ruínas desse entorno – além de objetos pertencentes aos escravos, como joias e amuletos – que vêm sendo encontradas por historiadores e arqueólogos da prefeitura da cidade, responsável pelas escavações.

Este, ao expor uma das faces mais cruéis da escravidão brasileira, servirá para mostrar que a cultura negra carioca, tão importante para a identidade nacional brasileira, tem origem em um episódio terrível. Disso, ninguém mais vai poder esquecer. O plano da prefeitura é transformar o lugar em um memorial (veja o vídeo do projeto no sitede O Globo). Caso se torne realidade, a iniciativa é mais do que louvável. Afinal, memoriais servem para não deixar esquecer.


Comida: meu bem meu mal



Da paulista Palmirinha Onofre ao inglês Jamie Oliver, são dezenas de apresentadores televisivos e chefs de cozinha que, no mundo todo, se dedicam a despertar, em seus telespectadores, a emoção sensorial que o preparo e a degustação de um prato são capazes de proporcionar. Não à toa o sucesso é absoluto. Mais do que uma necessidade fisiológica, o ritual da alimentação é um dos prazeres mais intensos do nosso cotidiano. E tem tudo a ver com o estado de espírito. Para desvendar essa relação, SAÚDE! entrevistou alguns dos maiores especialistas em comportamento alimentar. Saboreie alguns insights desses experts a seguir. E bom apetite!


Por que certos alimentos, especialmente os mais doces e gordurosos, conferem a sensação de prazer em momentos de depressão e ansiedade?
“Durante experiências depressivas ou ansiosas, a necessidade de obtenção de prazer por meio de um sistema de recompensa costuma se exacerbar”, explica o psiquiatra Alexandre Azevedo, coordenador do Grupo de Estudos em Comer Compulsivo e Obesidade do Hospital das Clínicas de São Paulo. “E os alimentos cheios de açúcar e gordura, como o chocolate e os molhos, por serem mais saborosos, proporcionam essa sensação depressa”, complementa a endocrinologista Ellen Paiva, diretora do Centro Integrado de Terapia Nutricional, na capital paulista.

As limitações impostas por uma restrição alimentar são capazes de se tornar frustrantes a ponto de conduzir a um estado de depressão?
“Sim, já que comer e beber, além de conferir bem-estar, faz parte dos rituais de socialização”, opina Lara Natacci, autora do livro Anorexia, Bulimina e Compulsão Alimentar, da Editora Atheneu. “Ou seja, uma dieta muito rígida não só priva o indivíduo do prazer que os alimentos oferecem como também conduz ao isolamento, favorecendo o estado depressivo.”

A partir de que ponto recorrer à comida como válvula de escape se torna prejudicial?
“Nunca a perda de controle e o aumento excessivo de um padrão habitual podem ser considerados algo positivo”, dispara Azevedo. “Às vezes, nos alimentamos quando estamos sem fome, em ocasiões festivas ou de confraternização. Entretanto, comer por tristeza ou melancolia traz o sentimento de culpa, o que é ainda pior do que o próprio exagero”, completa Ellen.

Que problemas na relação com a comida podem culminar em um transtorno alimentar?
“Não raro tudo começa com uma simples dieta para eliminar alguns quilos”, avisa Lara. Segundo ela, é comum que a pessoa passe a reprimir a fome até chegar a um ponto em que deixa de manifestar esse impulso. “Também existem evidências de que a pressão social pela boa forma na adolescência, os traumas de infância, o perfeccionismo e a presença da doença na família colaboram com esses distúrbios”, conclui.

Quais os perigos de transferir o vício de um item potencialmente nocivo, como o álcool e o cigarro, para os alimentos?
Antes da resposta, Alexandre Azevedo faz uma correção: “Existem substâncias capazes de provocar dependência química, como o álcool, o tabaco e as drogas ilícitas, diferentemente da comida, que, portanto, não promove vício”, esclarece. Algumas pessoas, porém, tendem a apresentar um comportamento compulsivo. “Ao parar de fumar, é esperado que o indivíduo se sinta ansioso e busque nos alimentos o alívio para esse sentimento”, afirma Lara Natacci. “Existem casos também em que o hábito mecânico de acender um cigarro ou beber um copo de uísque é substituído pelo de comer compulsivamente”, conta.

Por que alguns alimentos se tornam proibitivos?
“Quando itens muito calóricos, ricos em gorduras saturadas ou açúcares são ingeridos de maneira abusiva, eles se tornam verdadeiros promotores de doenças”, afirma Ellen Paiva. No rol das enfermidades, estão inclusos o diabete, a obesidade e os problemas cardiovasculares. “Mas as grandes porções e a frequência de consumo é que são os vilões. Consumido em pequena quantidade, nenhum alimento precisa ser banido do cardápio, exceto se houver dificuldade em controlar sua ingestão”, responde a endocrinologista.

Por que algumas pessoas perdem a fome quando estão tristes ou nervosas?
“De fato, há indivíduos que reagem dessa maneira. Outros, diferentemente, apresentam o aumento do apetite. Ou, então, não observam mudanças diante de uma situação de tristeza ou de ansiedade”, revela Azevedo. De acordo com o psiquiatra, o elo entre essas emoções e a vontade de comer seriam os neurotransmissores, substâncias que conduzem informações elétricas entre os neurônios, como a serotonina, a dopamina e a noradrenalina. “Eles regulam tanto o estado de humor como o equilíbrio entre a fome e a saciedade”, explica. Em outras palavras, quando esses condutores químicos são alterados devido a questões emocionais, pode ocorrer um desequilíbrio no apetite.

É verdade que as mulheres têm maior tendência a utilizar a comida como uma válvula de escape do que os homens?
“Nem sempre. Comer compulsivamente como uma forma de compensar o estresse pode ser uma característica tanto feminina como masculina”, avalia Lara Natacci. Mas, de acordo com a nutricionista, o fator hormonal é um agravante no caso delas. Isso porque, no período pré-menstrual, algumas enfrentam uma redução nos níveis de serotonina, que, conforme mencionamos anteriormente, é fundamental para o bem-estar. “Aí a tendência é que abusem do chocolate, por exemplo. Ele é rico em triptofano, substância precursora de serotonina”, justifica. Até porque, pelo simples fato de serem saborosas, as guloseimas promovem o prazer imediato, o que ajuda a atenuar o desconforto emocional típico dessa fase do ciclo.